Entendendo os chapéus da década de 1930 com a revista Marie Claire

by - agosto 23, 2019

Chapéu de palha

As capas de Marie Claire tem muito mais a ensinar do que você imagina!

Hoje, se não for inverno, não faz muito sentido usar chapéu. Mas na década de 1930, sair sem chapéu era quase como sair pelado, pois era um acessório fundamental! E não apenas para proteger a pele do sol ou a cabeça e os cabelos do frio e do vento. O chapéu era a cereja do bolo para quem quisesse sair bem vestido! 

O chapéu não era apenas um item funcional, mas decorativo, pois poderia mudar um figurino inteiro com apenas uma troca (!). Além disso era barato e poderia ser feito em casa, o que era uma mão na roda após o empobrecimento da população devido a Grande Depressão de 1929. 

Assim, nos anos 1930 a chapelaria feminina disparou em uma variedade de modelos e construções, lançando diversos nomes ao olimpo da moda.

Por conta dessa diversidade e da importância desse acessório para compôr um figurino dos anos 1930s, elaborei este pequeno guia para identificar alguns modelos do período 1937-1939 e, de cara, entender um pouco da moda propagada pela icônica revista francesa Marie Claire.

Marie Claire: uma senhora revista

Quando lembro da revista Marie Claire, estas são as primeiras imagens que vem à cabeça:

  • novidades de moda e maquiagem para parecer uma mulher bem-sucedida;
  • 10 dicas para amarrar seu homem na cama.
Bem, estas são as lembranças dos saudosos (cof, cof...) anos 1990 e 2000. 

No entanto, meus caros e minhas caras, há mais de 80 anos atrás a revista tinha um conteúdo  bem diferente. Ao ser lançada em 1937 na França, seu foco girava em quatro assuntos principais:

  • moda (tendências de roupas e acessórios e alguns DIY);
  • beleza (dicas de penteados, cosméticos e ginástica);
  • família (culinária, como cuidar do bebê, como polir prata);
  • literatura (contos).
Engraçado notar que quase todas as revistas femininas tinham essa estrutura, inclusive  as do Brasil, com poucas variações de pauta (como cinema). Não digo que são temas que me agradem tanto (os contos de qualquer uma delas são terríveis para o meu gosto, embora adorados na época), mas são melhores do que as receitas para amarrar um homem HAHAHAH

Prossigamos: a Marie Claire foi lançada para concorrer em um mercado aquecido, já que na França eram publicadas outras revistas femininas interessantes e antigas como Le Petit Echo de la Mode (desde 1880) e Modes et Travaux (desde 1919). Os conteúdos também apelavam para as últimas novidades e, como chamariz, as capas eram ilustradas por nomes famosos da alta costura francesa.

Na década de 1930, as capas de revista eram feitas por meio de ilustrações ou por fotografias. A aquarela foi a técnica selecionada para a Marie Claire n. 01, sem mostrar nenhum modelo dos costureiros franceses. Já as fotografias, além de mais modernas, tinham muitos retoques de cor e correções das feições, de forma que também parecem pinturas. 
Ilustração em aquarela
1937: Marie Claire n.01, uma aquarela sem o crédito do artista. Por este ponto de vista, prefiro as fotografias com retoques.
Uma das primeiras revistas a trocar as capas ilustradas pela fotografia foi a Vogue, e esse fato gerou protestos por parte do mercado da moda. Porquê? Porque entendia-se que a ilustração era a expressão artística da moda, pois mostrar os croquis dos costureiros. Já uma fotografia não conseguiria transmitir a mesma mensagem.

Ou seja, além de refletir as tendências, as capas eram a primeira impressão, a vitrine que as pessoas comuns teriam da alta costura francesa. E esta era uma ferramenta de propaganda, que ultrapassava fronteiras aliás: Marie Claire começou a ser publicada no Reino Unido em 1941, um investimento no auge da guerra e com Paris já ocupada pelos nazistas. A costura francesa deu seus pulos para sobreviver a qualquer custo.

No fim das contas, ganharam as capas fotografadas, mas fotografadas com modelos vestidas feitas pelos grandes estilistas e chapeleiras de Paris!

Moça lê revista Marie Claire
1938: moça em banca de jornal, usando um halo hat e lendo a edição de julho daquele ano de Marie Claire (coincidência!)

Paris é uma festa!

Em torno do ano de 1934, houve uma recuperação econômica da Grande Depressão de 1929 e a chapelaria teve uma ascensão suficiente para levantar novos chapeleiros e seus ateliês. A revista Marie Claire, como tantas outras, incluía alguns modelos em suas capas, idealizados por costureiras como Madame Agnès e Louise Bourbon e ateliês maiores, como o Susanne Talbot e Rose Valois.

Vale lembrar que na primeira metade da década, imperavam dois modelos de chapéu: o cloche e suas variações (herança dos anos 1920) e a boina, ambos modelos simples que poderiam ser feitos em casa com poucos ou nenhum adorno.

Além desses, um terceiro chapéu fez MUITO sucesso: os chapéus de feltro angulares, um misto dos modelos masculinos Fedora (aquele do Don Draper ou do Michael Jackson) e Bowler (aquele do Charlie Chaplin). O Fedora tem a seguinte anatomia: abas média e uma coroa indentada, ou seja, levemente amassada no centro e nas laterais para dar uma forma angular. Já o Bowler do Charlie Chaplin tem uma coroa arredondada e as abas curtas e viradas sutilmente para cima.

Os chapéus de feltro angulares surgiram no começo da década com uma aparência ligeiramente masculina, muito porque chapeleiros masculinos começaram a produzir para mulheres, mas adaptando-os ao gosto feminino. Segundo o livro ”Great Chic from Little Details Grows: Women’s Accessories in the 1930s”, lançado para uma exposição no museu do Fashion Institute Technology (FIT), estes chapéus...

"...mostravam uma qualidade de elegância casual e poderiam ser combinados com qualquer conjunto diurno. (...) Raramente eram meras cópias de estilos masculinos, contudo. Embora não severamente modernos como o cloche, suas dobras intrincadas, pregas e técnicas de costura eram frescas e sutilmente complexas."

Realmente, este chapéu tinha um caimento misterioso e dramático, ainda mais porque era usado tombado para um lado, escondendo parcialmente o rosto. O modelo foi usado por grandes estrelas, como Greta Garbo e Marlene Dietrich, o que o tornou ainda mais popular. Teve ainda vários desdobramentos no período de 1937-1939, como iremos ver adiante nas capas de Marie Claire.
Chapéu fedora
1930s: Moça desconhecida. Repare na disposição angular do chapéu em relação à cabeça e suas várias dobras.
Uma única fita de gorgurão adorna a peça.
 Fonte: Chatter Blosson blog
Explicado o panorama, vou mostrar alguns dos chapéus mais representativos do período de 1937 a 1939, quando estoura a Segunda Guerra Mundial, mas sem entrar na década de 1940.

A chapelaria é algo bem difícil, porque há variações dos modelos e todas recebem nomes diferentes. Logo, introduzo o assunto de maneira referencial, só para conhecermos os principais modelos retratados pela revista e a sua anatomia (isto não é um livro, é só um blog).

Lembrando que todas as capas de Marie Claire pertencem à Gallica - Biblioteca Nacional da França, na qual você pode acessar as versões da revista até 1944.

Então vamos aos chapéus. Voilà!

Com que chapéu eu vou pro samba que você me convidou?

1) Fedora + Bowler = chapéu de feltro (?)

Este é uma evolução do chapéu de feltro angular que comentei acima. Eu chamo de chapéu de feltro  pois apesar de pesquisar muito, não consegui encontrar um nome específico, então é mais simples se referenciar ao material do qual os primeiros eram feitos....mas não seria correto porque: 1) há outros tipos de chapéus de feltro; 2) e no fim da década se empregavam diversos outros materiais para fazê-lo, como a palha (como na capa de 1939 abaixo) e o fio de lã (feitos em crochê).

Os modelos femininos evoluíram tanto que a anatomia angular, proposta no começo dos anos 1930, se funde novamente com outros formatos: os modelos retratados em Marie Claire tem suas copas modificadas, tornando-se arredondadas e mesmo achatadas no topo. As abas também ganham elementos variados, como os franzidos observados na capa de 1939 abaixo.
Marie Claire, 09/junho/1939, chapéu de palha de Madame Agnès.
Outra curiosidade é que os primeiros modelos do começo da década eram decorados minimamente com uma fita de gorgurão ou uma discreta peninha.

Já as versões apresentadas por Marie Claire entre 1937-1939 são um samba: recebiam laços, fitas grandes e armadas, muitas flores de seda ou feltro, miniaturas de passarinhos (!), frutas de cera e o que tivesse de aviamentos na gaveta. Veja o modelo abaixo. Aliás, este é um dos chapéus que mais aparecem no período  nas capas de Marie Claire!
Marie Claire, 03/março/1939, chapéu de feltro com véu e flores do ateliê Rose Valois
Lá pelos idos de 1939, também sustentavam véus longos que cobriam o rosto e às vezes, até o pescoço. E como dito, nem de feltro mais precisavam ser, e tampouco apenas cinzas ou marrons: poderiam ser de todas as cores. Enfim, Paris é uma festa!

Esse modelo não precisava necessariamente ser usado com todos estes enfeites. Lembremos: esta é uma revista de moda que lança tendências, que no cotidiano são bem suavizadas. Também lembremos que estamos na França, capital mundial da moda e de algum exagero 😌

Um fator importantíssimo: durante toda a década este modelo foi usado tombando-se a aba sempre para o lado direito, escondendo parte do rosto e formando novamente um ângulo dramático. Sempre, sempre, sempre o lado direito! Nunca o esquerdo!

Outra coisa: apesar de todos estes acessórios, este chapéu é considerado sport, ou seja, era para ser usado durante o dia, em atividades informais e em qualquer estação do ano.

2) Turbante

O turbante é um acessório feito com um tecido que é torcido e amarrado rente à cabeça, sem cobrir a testa. Na capa abaixo, de 193, a modelo usa um turbante modelado para armar dois ângulos no topo da cabeça.

Marie Claire n.28, setembro/1937, conjunto de Charles Creed.
Os tecidos variavam dos leves, como a seda, para os mais firmes, como o feltro e o veludo. Estes últimos facilitavam a formação de ângulos e formas, deixando este acessório mais complexo e particular.

Por conta dessa versatilidade e da habilidade de quem fazia o nó, os turbantes não tinham formas únicas e estabelecidas, as quais variavam de cabeça para cabeça.

Fim dos anos 1930: Joan Crawford com um turbante diferente, trançado no alto da cabeça.
O turbante era usado com vestimentas elegantes, a julgar pela capa e a foto de Joan Crawford acima.  Lembrei agora também da Sira Queiroga, da sério "O Tempo entre Costuras", usando um modelo semelhante e magnífico, do mesmo período, justo em uma cena em que entra em um hotel caríssimo em Madrid. Entretanto, também poderia ser usado em ambientes informais, como o campo e a praia.

Aliás, este é um acessório que passou do aspecto apenas decorativo para o funcional na virada dos anos 1940, com o ingresso das mulheres nas fábricas e a necessidade de proteção do cabelo por segurança.

3) Picture hat

Este chapéu, com título sem tradução para o português, é reconhecido por ter abas largas com coroa baixa. O nome do modelo vem da ideia de emoldurar o rosto, fazendo dele uma pintura.

Isto faz sentido ao saber que eles são uma evolução dos modelos dos anos 1900 e 1910, portados  por mulheres eduardianas, que adornavam a peça com uma profusão de acessórios: flores, laços gigantes, penas e passarinhos empalhados (de verdade!) eram os preferidos. As abas e as copas eram maiores para suportar este peso de detalhes.

As Gibson Girls são a maior referência de estilo para este chapéu nos anos 1910, ou mesmo a Rose do Titanic 😂

Uma Gibson Girl anônima com o rosto bem emoldurado. Cerca de 1900-1915.
Nos anos 1930, o formato básico do picture hat mudou pouco: dessa vez, a copa se encaixava perfeitamente na cabeça, até porque os cabelos eram cortados curtos. Já na era eduardiana, os cabelos eram longos e arranjados para cima, de modo que o chapéu parecia estar sempre flutuando.
Chapéu rosa
Marie Claire, n.144, julho de 1939. Conjunto por Madame Bruyère.
Eu amo esta foto, que mais parece uma pintura devido a tantos retoques.
Outra característica dos picture hats dos anos 1930 retratados por Marie Claire é que os adornos são mais discretos: dessa vez, basta um bom laço de seda ou de veludo, proporcional ao tamanho d a copa.

O ambiente para usá-lo parece ser o diurno (principalmente o período da manhã) por conta de sua discrição. Além disso, talvez seja um chapéu de verão porque todas as versões que encontrei foram publicadas em julho (verão europeu) e combinadas com roupas claras e leves. 

Marie Claire, n.126, julho de 1939. Vestido de Balenciaga e chapéu de Madame Agnès.
Que belo combo da alta costura!

4) Toque escocesa ou Scotch bonnet 

Este não é o chapéu mais popular das capas da Marie Claire, mas o escolhi porque tem uma importância histórica muito grande: a Segunda Guerra Mundial tinha estourado na Europa apenas três meses antes da publicação da capa a seguir.

Iniciada a guerra, começam as tendências patrióticas e o Militarismo na moda feminina: as mulheres passam a vestir roupas com aspectos mais masculinos e sóbrios, com ombros mais marcados e, claro,  pontuando com acessórios das cores da bandeira de seu país.
Toque escocesa
Marie Claire, n.144, dezembro de 1939.
Bolsa e chapéu do ateliê Rose Valois.
A toque escocesa de Marie Claire é ainda mais simbólica por dois motivos:

  1. ostenta as cores da bandeira francesa (mas também da inglesa); e
  2.  seu modelo remete ao tradicional chapéu Glengarry, usado pelo tradicional Regimento Real da Escócia desde o século XIX. Na Segunda Guerra, esta toque era azul escura, com uma faixa xadrez em vermelho, branco e azul escuro.
Em 1937, o novo código de uniforme militar do exército britânico determinou que este tipo de chapéu poderia ser usado pela tropa quando o uso de capacete não era exigido (ou seja, fora do campo de batalha). Haviam diferentes cores para cada regimento.

Os soldados franceses também a usavam durante a Segunda Guerra, assim como os russos. Até hoje, este chapéu tem conotação militar.

Em resumo: se você fosse mulher, patriota e apoiasse as forças militares de seu país durante a Segunda Guerra, usar uma toque escocesa seria algo totalmente em moda.

E essa moda chegou até o Brasil. Um dia, dando uma volta no Cemitério do Araçá, vi uma foto de uma moça falecida em 1945, a qual usava uma toque escocesa. Eu fotografei porque o registro era excepcional, e estou publicando aqui para fins históricos e culturais e já expressando todo o respeito aos parentes sobreviventes (aliás, eu queria muito poder saber mais informações sobre ela).

moda dos anos 1940
Senhorita Alexandrina Massucci (1915-1945), portando uma toque escocesa combinada com a gola. Cemitério do Araçá/SP.

Por fim, também já tive a oportunidade de ver em um brechó uma outra toque escocesa, feita caseiramente à mão em tecido xadrez e adornada com um passarinho de feltro no topo...original, originalzinha....(eu queria, mas não comprei porque né...não sou rica ainda).

E qual é o seu chapéu?

Pois então, minha gente, espero que tenham gostado desse miniguia, à guisa de revisão bibliográfica, desses acessórios tão engenhosos e emblemáticos que são os chapéus da década de 1930. Espero também que você tenha gostado de conhecer a obra desses artistas da chapelaria!

Adorei pesquisar porque amo chapéus, e seria ótimo se pudéssemos usar esses modelos tão doidos sem parecermos estranhas na rua. O meu preferido sabe qual é? O de feltro com poucos adornos e tombado de lado, porque dá um ar misterioso e sofisticado. Mas também usaria a toque escocesa pelo estilo militar (adoro uma farda HAHAHA) e porque a Escócia bate forte aqui no coração ♥

Deixa aí um comentário, um alô, uma dúvida e me fala qual desses chapéus você gostou mais!!!



You May Also Like

3 comentários

  1. Eu sou adepta dos turbantes com os nós dos anos 1940. Eles são perfeitos para aquele dia que o cabelo tá revoltado ou você tá com preguiça de arrumar. Não uso mais porque muitas vezes tenho receia de ver um turbante vintage ser (mal) interpretado como um turbante afrobrasileiro e isso me trazer algum tipo de contratempo.

    O picture hat é maravilhoso e eu usaria TODO DIA

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pauline, sabe que também tenho este receio com os turbantes? Acredito que seja porque nem sempre fica claro que determinadas peças da indumentária foram utilizadas por múltiplas culturas....

      Agora sobre o picture hat, já te imagino portanto um!!! Estes chapéus são chiques, refinados. Não tem como não gostar!

      Excluir
  2. Parabéns!

    Belíssimo artigo! Texto rico de informações e muito gostoso de se ler! Já virei fã. Quero ler todo o blogue. Visite o meu: www.ivanirfaria.wordpress.com

    ResponderExcluir

Instagram

- Todos os direitos reservados a Katiúcia de Sousa Silva - Por favor, não copiar o conteúdo desta página sem mencionar a autoria.