Trajes de luto nos anos 1920

by - maio 13, 2020




Há 100 anos atrás, roupa preta era sinal de luto.

2020 começou bem azarado. Apesar da virada da década ter sido celebrada com muitas festas e boas vibrações, poucos previram (além do Obama) que uma pandemia iria mudar nossa forma de viver, de se relacionar e de enxergar o mundo.

E o barco afundou. 

E hoje, meio sentida pelo contexto que vivemos, resolvi falar de luto. Não o luto vitoriano, mas o luto na década de 1920, justo na era das flappers e melindrosas..

(Ah, o quadro que abre o post se chama "Lady in Mourning", de Martin Mendger (1930))

O luto dos anos 1920: a Guerra é o começo do fim

Os trajes de luto são mais conhecidos quando falamos do período vitoriano e eduardiano. Isto se deve ao rigoroso código de vestimentas e reclusão que deveria ser praticado principalmente pelas mulheres, visando mostrar publicamente a dor da perda de alguém. 

O lamento pela morte era dividido em fases e estendido por 3 meses a 2 anos, o que alterava e encarecia o guarda-roupa feminino. Quem não seguisse, era mal-visto pela sociedade. Como resultado, há uma profusão de opulentos vestidos negros e jóias de luto exibidos em museus (como o vestido abaixo) ou vendidos em leilões no exterior.

1865: traje vitoriano em seda. Origem: Inglaterra.
Fonte: National Gallery of Victoria 

Entretanto, pouco ou nada se fala do luto no século XX, mais precisamente da década de 1920. O motivo é importante: o costume de vestir preto por um longo período estava desaparecendo. 

Quem explica isto é a autora Sonia Bedikian (2008), no artigo "The death of mourning: from victorian crepe to the Little Black Dress" ("O fim do luto: do crepe vitoriano ao Vestidinho Preto").

A Grande Guerra Mundial (1914-1918), a mais sangrenta do século XX, foi o gatilho para esta mudança. Com as mortes ocorrendo em grandes quantidades, trocar todo o guarda-roupa começou a ser visto como algo desnecessário, já que todo mundo tinha um parente vitimado pelo conflito. Ou seja, andar na rua era ver uma multidão de viúvas e filhos sem pai. 

1917: capa da revista Le Petit Echo de la Mode para o Dia de Todos os Santos (1º de novembro)
Fonte: Gallica/Bibliotèque nationale de France

Além disso, as mulheres foram levadas ao mercado de trabalho como enfermeiras, motoristas de ambulâncias e outros empregos antes exercidos por homens (como indústrias), o que dificultou o isolamento exigido durante o luto "fechado". 

Os vestidos de luto neste período se tornaram mais modestos e feitos com materiais mais práticos, como lã e gabardine. Acompanhavam sapatos e meias pretas, além de um véu que apenas circulava o rosto, sem cobri-lo totalmente como na era vitoriana. 

Findada a guerra em 1918, a última coisa que as jovens queriam era se enclausurar em um luto fechado novamente, pois isso revivia o trauma do conflito (mal sabiam elas que logo após viria a Gripe Espanhola). 

Este novo cenário trouxe adaptações: o traje de luto dos anos 1920 era menos restritivo e mais provocante e elegante, feito com tecidos finos e transparências, e adornado com bordados e miçangas. Ao longo da década, ter um guarda-roupa de luto foi se tornando obsoleto e fora de moda.


As fases do Luto e seus trajes: o crepe, o preto e o branco

Apesar de tudo, o costume de trajar o luto continuou aparecendo em revistas de moda e livros de etiqueta e costura durante os anos 1920. Estas sugestões de figurino apareciam na Europa e Estados Unidos, mas também no Brasil.

O anúncio seguinte, publicado em 1925 pela revista Vida Doméstica, indica que o costume de se vestir trajes de luto permanecia no Brasil, inclusive quando havia urgência de 24 horas.
1925: propaganda de trajes de luto, disponíveis em questão de urgência.
Fonte: Vida Doméstica (Hemeroteca Digital Brasileira).

Esses enxovais de última hora eram fundamentais, já que até o tecido usado era uma forma de comunicação. 

Existia desde a era vitoriana um tecido que simbolizava o luto: o crepe/crape ("crepe inglês" nas revistas francesas). O crepe inglês existia em duas cores: preto e branco. Os trajes poderiam ser 100% feitos com ele ou apenas adornados em punhos, golas e chapéus, de acordo com a fase do luto. Sua textura era bem enrugada/estriada e trajá-lo era um sinal de lamento pelo falecido. 

Vestido vitoriano com corpo e cauda em crepe inglês.

O crepe inglês foi sendo trocado ao longo dos anos 1920 pelo crepe miosótis. Eis os motivos, segundo a revista Les Modes, de novembro de 1925:

É verdade que o crepe inglês que foi empregado outrora nos vestidos de luto e nos grandes véus era de uma espessura  e de uma rigidez que lhe deixava grosseiro e especialmente desagradável ao toque. Hoje, a Maison Courtauld (...) criou um novo tipo de crepe inglês, o crepe miosótis. Este tecido, cuja textura é excessivamente fina, guarda a aparência do crepe inglês, mas rivaliza por sua flexibilidade e leveza com o crepe georgette e o substitui mais frequentemente, pois é mais distinguível nos grandes lutos e mais resistente (tradução minha).

A imagem seguinte mostra um figurino de 1925 construído com o crepe miosótis. Repare na transparência e na textura estriada do véu.

1925: jovem portando chapéu e véu em crepe miosótis.
Se você olhar bem, consegue ver a textura estriada do tecido, semelhante ao crepe inglês.


Como resquício do período vitoriano, ainda haviam regras determinando as fases do luto e seus respectivos trajes, ou seja, o que era de bom-tom vestir. Neste artigo, tais regras vem de duas fontes:


São três as fases, as quais descrevo a seguir.
  1. luto profundo;
  2. meio luto ;
  3. saída do luto,
É importante lembrar que a duração das fases variava de acordo com as fontes, o país e a região. Entretanto, as fases descritas aqui são bem próximas ao que se considerava o "padrão". 

1) Primeira Fase: Luto profundo ou luto fechado

A mulher em luto profundo ou fechado deveria, imediatamente ao ocorrido, ser vista em trajes pretos. Todos os vestidos, capas e chapéus deveriam ser foscos e sem brilho, e de preferência, adornados com o crepe inglês.

As luvas também deveriam ser foscas: o tecido ideal era o suede, pois não tem qualquer brilho.

Os períodos do luto fechado são os seguintes:
  • Marido: 1 ano (véu longo por todo o período);
  • Pais e sogros: 1 ano (véu longo por 6 meses);
  • Avós: 6 meses (véu curto);
  • Irmãos: 6 meses (véu opcional).
  • Filho maior de 12 anos: 1 ano.
As viúvas, e somente elas, deveriam usam um véu longo por 1 ano (!). Este era um truque da sociedade: mostraria que aquela mulher não estaria só de luto, mas indisponível para qualquer relacionamento afetivo. 

A revista Vida Doméstica citada lá em cima detalha ainda mais o traje da viúva: 
a) o chapéu deveria ser um pequeno calot preto ( um chapéu sem abas ou dobras) que poderia ser adornado com crepe inglês branco, sem dispensar um "véu simples ou duplo, bem envolvente, de crepe miosotis"; 
b) o mantô (um sobretudo) deveria ser reto e com golas e punhos pretos em crepe. Isso nos primeiros seis meses.

Nos segundos seis meses do primeiro ano, o véu deveria ser trocado por um tecido de crepe georgette, que caísse até a borda do mantô.

1925: vestido e véu de luto em crepe miosótis. 
Apesar do design inteiro ser muito feio (rs), é um vestido de alta-costura, desenhado pela Casa Worth. 
Fonte: Revista Les Modes/Gallica/Bibliothèque nationale de France

Em se tratando de jóias, seu uso não era recomendado ou bem visto. Uma exceção era dada às jóias de prata envelhecida, a aquelas com a pedra semipreciosa chamada linhito (de cor preta, semelhante ao ônix) e o baquelite, que tinham um brilho bastante discreto.
1920s: broche de luto em baquelite.
Fonte: 1stdibs

E AGORA A SURPRESA: lendo aleatoriamente o livro "A Complete Course in Dressmaking", de 1922 (disponível no Archive.org), bem depois de terminar esta pesquisa....encontrei esta menção :

"Um traje todo branco é considerado como luto profundo tanto quanto um traje todo preto" (p.18).

E isto lembra muito o vestir de algumas culturas do Oriente, como a indiana, que adotam o branco como sinal de luto. Entretanto, ainda não vi um traje branco de luto dos anos 1920. Quem vir, me avise!

2) Segunda fase: Meio Luto

Após a primeira fase de luto fechado, roupas e chapéus continuam pretos, mas não precisam mais carregar o crepe inglês. Um pouco de branco é permitido nos punhos e golas. 

O mantô, um clássico dos anos 1920, pode ter a gola feita com peles, mas sem brilho, como a lã da ovelha astracã. 

1920s/1930s: mantô de lã com gola de astracã.
Fonte: Crush Vintage (Etsy)

O véu da viúva também desaparece e as luvas de suede podem ser trocadas pelas luvas de pelica, mais brilhantes.

Na imagem abaixo, vemos uma moça portando chapéu com fita preta e branca (no pescoço) e blusa interna branca. Ela não usa véu: pode ser que seja uma viúva em meio luto ou que tenha perdido outro parente (o que a dispensaria do uso do véu).


1927: vestido de luto em crepe miosótis. Repare a saia com godês (característico da década) e o laço branco que prende o chapéu à cabeça.
Criação da Maison Au Sablier
Fonte: Revista Les Modes/Gallica/ Bibliotèque nationale de France.

Os períodos de luto novamente variam, ficando mais leves e dispensáveis para alguns casos:

  • Marido: 6 meses;
  • Pais e sogros: 6 meses;
  • Avós: 4 meses;
  • Filho maior de 12 anos: 6 meses;
  • Filho menor de 12 anos: apenas 6 meses de meio luto (sem cumprir luto profundo).

3) Terceira Fase: Luto aliviado

A terceira fase simboliza uma preparação para a mulher voltar a usar uma paleta de cores e sair da reclusão, interagindo mais com a sociedade. Por isso, os períodos resguardados eram mais curtos, como vemos a seguir.

  • Marido: 6 meses;
  • Pais e sogros: 3 meses;
  • Avós: 2 meses;
  • Filho maior de 12 anos: 6 meses.
Portanto, as roupas e chapéus eram inicialmente uma combinação de preto e branco, ou mesmo só branco. Ao longo do período, outras cores deveriam ser adicionadas como cinza e lilás/mauva/violeta, e por fim, o azul-marinho.

1924: vestido em crepe miosótis, criado por Martin Wengrove.
Fonte: blog A la Recherche des Modes Perdues et Oubliées

Nesta fase, os colares de pérolas eram permitidos, mas somente com uma volta. Já as pedras preciosas permitidas eram somente o linhito e as ametistas, devido a sua cor arroxeada.

1920s: um anel de prata e ametistas da casa Boivin, adequado para o luto aliviado.

Fazendo uma relação aqui com as séries.....vamos falar de Downton Abbey. A série se passa entre 19e910s/1920s, com figurinos premiados com vários Emmys devido a autenticidade dos trajes (muitos são originais de época). Durante a série, ocorrem várias mortes e as personagens cumpriam o período de luto como esperado. Os trajes mais impressionantes são justamente os de "luto aliviado": os tons lilases, malvas e cinzas são ilustrados com bastante precisão. Isto é interessante pois são poucas as produções que retratam este momento do vestuário feminino (é muito mais comum ver o luto profundo e, menos frequentemente, o meio luto).

E olha...hoje em dia raramente ou nunca associamos os cinzas e lilases à perda de alguém. Mas nós anos 1920 isso ainda era um código. Nao é interessante?

Sim, eu sei: você nunca assistiu esta série pensando nisso (hehe).

Começo dos anos 1920s: as ladies de Dowonton Abbey vestindo o luto aliviado
Começo dos anos 1920: as ladies de Downton Abbey vestindo luto aliviado

Vestir de luto: uma questão de gênero + conclusões 

O luto nos anos 1920 era aplicado quase que exclusivamente pelas mulheres. Na era vitoriana, homens ainda usavam capas e faixas pretas de crepe inglês (conforme diz a Sonia Bedikian).....mas no livro de 1923 da Mary Brooks Picken, ela ressalta que aos homens era reservado usar apenas uma fita preta no braço e no chapéu.

Fácil (como sempre).

E eu nem sequer encontrei uma foto ilustrando algum homem com a fita negra...

É engraçado que a década de 1920 sempre é lembrada pela alegria, jazz e tal..aquele monte de clichês...mas em um mundo onde as vacinas e tratamentos médicos eram limitados, pensar pela ótica do luto talvez torne essa década  um pouco mais sombria.

Por outro lado, é interessante ver como os costumes foram profundamente alterados após a Primeira Guerra Mundial, que modificou tradições a ponto de algumas não fazerem mais sentido.

Mesmo sendo anos 1920, que é a década mais amada da galera (?), nenhum destes trajes é realmente bonito. É tudo meio desarranjado, pesado, fora de escala. Com os meus olhos de 2020. A sua importância está na capacidade de comunicar uma perda.

MAS EU QUERO SABER DE VOCÊ? Você vestiria o luto estendido? Por meses ou anos?

É um grande sinal de respeito não aparecer em um funeral de bermuda e camiseta neon. Logo o preto e outras cores escuras são cores mais adequadas para o momento. Mas e você? O que pensa sobre os trajes de luto?

Ah, e uma última coisa: a próxima vez que você vir por aí uma "melindrosa gótica", lembre desse texto :D





You May Also Like

2 comentários

  1. Taí uma coisa que eu não consigo fazer/entender; como as pessoas vão a funerais vestidos de qualquer jeito. Cores berrantes, estampas, sei lá... vi tantas vezes que eu achava que era eu "a antiquada" que estava pensando errado rs. Acho que usar preto, roupas sobrias como azul marinho, cinza, marrom... é sinal de respeito tanto com quem foi, com os familiares e também, dependendo da sua religião ou do que simplesmente se acredita, em respeito aos "moradores" dos cemitérios que entramos para o sepultamento. Pra mim, é sinal de respeito a vestimenta e manter o silêncio.
    Sobre manter o luto na vestimenta, acho que ele deveria iniciar e terminar de acordo com o quanto realmente te dói aquela perda. Não algo obrigatório; mas entendo que a sociedade mesmo de hj iria julgar de qq forma. Se vc superasse "muito rapido" a perda de uma marido, mesmo que ele fosse um babaca, a mulher ainda seria mal vista. Entao, melhor essa de luto por vestimenta ficar no passado mesmo hahah ����

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Verdade! Também não entendo como é tão difícil para as pessoas vestirem roupas mais sóbrias num velório, que é algo tão rápido, tão poucas horas. Não é nada luxuoso, é triste, é um momento de respeito....roupa escura todo mundo tem. Realmente é difícil....

      Confesso que eu também não cumpriria este código de luto muitos dias ou semanas após o ocorrido. Felizmente a vida continua para quem fica, e ficar ali dois anos, 6 meses....é algo que compromete até a saúde mental. E pensando em uma época onde mal existiam vacinas e todo mundo morria, era capaz da pessoa ficar vestida de luto por alguém uma boa parte da vida!!! Também passo a vez, viu? rsrsr

      Excluir

Instagram

- Todos os direitos reservados a Katiúcia de Sousa Silva - Por favor, não copiar o conteúdo desta página sem mencionar a autoria.