O chapéu de Madame Lallet

by - maio 27, 2019


No mês passado recebi de um antiquário uma caixa cheia de chapéus. Esta foi uma daquelas compras feitas "no escuro", sem nem perguntar direito o que iria receber 😅. Mas o conteúdo deu tão certo, que fiquei na dúvida do que gostava mais: do conteúdo em si ou da caixa. E resolvi descobrir sua história.


PARTE I - A caixa

Vamos começar pela caixa.

A caixa é de papel cartão reforçada com madeira, e a tampa é fechada com um cadarço azul-escuro. Dentro ainda há o papel vegetal original que embrulhava o chapéu. Nunca ouvi falar de Madame Lallet, mas ela tinha uma loja em Copacabana. Mais precisamente na Av. Copacabana n. 945, onde vendia “Chapeos, Modelos, Novidades”.

A probabilidade de um objeto desse resistir ao tempo é muito pequena.


"Chapeos, modelos e novidades", o nome do ateliê e seu endereço: essas são as informações disponíveis na caixa.
Uma pausa: vamos imaginar a atendente da loja, ou a própria Madame Lallet arrumando o chapéu e fechando delicadamente dirigir caixa, enquanto a cliente observa. Ela chega em casa, entra em seu quarto, põe a caixa sobre a cama e a abre com carinho, feliz com a aquisição. Tira e põe na cabeça, se olha no espelho da penteadeira. Talvez tenha sido o seu único chapéu.

Hora de convocar o espírito do detetive Sherlock Holmes (!)

PARTE II - Os chapéus.

O mais engraçado é que nenhum deles é de Madame Lallet.

Porém, uma linha do tempo dos chapéus usados em meados do século XX está nesta caixa...alguns tem etiquetas que indicam os ateliers onde foram comprados, e outros não.

Dos anos 1940, dois chapéus que ainda preciso identificar o nome do modelo. Dos anos 1950, dois casquetes. Dos anos 1960, um pillbox. Dos anos 1970, um chapéu de feltro e outro de abas largas do tipo floppy. Todos em muito bom estado! Mas vou detalhar melhor cada um deles em um próximo post 😉

Chapéus vintage figurino
Nada menos que sete chapéus!

Parte III - A investigação

Então fui buscar saber mais sobre Mme. Lallet. Na Hemeroteca Digital Brasileira encontrei alguns anúncios sobre seu atelier, datando do ano de 1954, o que dá à caixa pelo menos uns 60 anos de existência. Porém nenhuma foto ou desenho dos chapéus e figurinos, apenas um pequeno classificado num jornal comum, que nem de moda era. Fora isso, nenhum registro dela, em nenhuma tese, revista, em lugar nenhum.

Em 1954, Mme. Lallet fez anúncios no jornal Correio da Manhã. Hemeroteca Digital Brasileira.
"Paris Chic": dá pra ver que quem ditava o tom da loja era a moda francesa. E não só na loja dela. Nesta época a avenida Nossa Senhora de Copacabana começou a receber várias boutiques de costureiras que começaram a vender, além de roupas sob medida, roupas prontas e abertamente inspiradas na moda francesa. Para saber mais, esta dissertação trata maravilhosamente sobre o assunto.

O  ateliê ficava no Edifício Roxy, um prédio-galeria importante no Rio de Janeiro que abriga até hoje o tradicional Cine Roxy, o point dos moços e mocinhas da Copacabana nos anos 1940 e 1950. 

Será que a vitrine da loja dava para a rua? Será que enquanto aguardavam na fila, as moças ficavam observando os chapéus?

O Cine Roxy, vizinho de Madame Lallet, na década de 1950. Era por essa rua que ela andava todo dia. Sente a vibe! 
Mas como encontrar um chapéu que tenha sido feito, construído por ela? Que tenha registrado o seu trabalho para a posteridade?

Sorte (!). No local mais improvável, o Mercado Livre, há um vendedor que tem um chapéu feito no atelier dela. Que loteria!

A peça é um modelo de chapéu denominado mushroom hat que, por falta de tradução melhor, chamarei aqui de chapéu-cogumelo 😂😂. Estes acessórios se caracterizam pela forma arredondada e por ter as abas totalmente viradas para baixo, mas com uma figura achatada sobre a cabeça. Estes chapéus foram bem marcantes sobretudo com o lançamento da coleção New Look da Dior em 1947 e foram populares nas décadas de 1950 e 1960 também, com figuras como Audrey Hepburn entre suas adeptas..

Estes chapéus tinham um apelo mais formal. Porém no Rio de Janeiro dos anos 1950, é possível que tenham sido usados também em situações mais informais, visto que suas abas largas podem ter sido extremamente úteis para proteger a pele do sol.

O modelo de Madame Lallet é de palha, encimado por um alfinete para prender o chapéu nos cabelos. Este alfinete é bem grande, mas é harmônico, visto que o chapéu é largo (apesar de o vendedor do Mercado Livre não fornecer as medidas, dá para ter uma dimensão do tamanho). Na parte interna, ele é forrado com tecido preto e há também um elástico para segurá-lo à parte de trás do penteado. Há ainda uma etiqueta com as inscrições "Paris Chic" e "Rio" ao local do nome do ateliê. Essa informação diz muito: coloca o Rio como "o local da moda", o que era, de algum modo, verdade 😊

Chapéu Mercado Livre
O chapéu de Mme. Lallet.
A assinatura: etiqueta sobre fita de gorgurão, destacando novamente a inscrição "Paris Chic". 

Se o chapéu ainda estiver à venda, você poderá ver mais imagens aqui (não sou eu quem está vendendo!)

Com este modelo, Madame Lallet tira partido da maior sensação da moda do pós-guerra: a coleção Corelle do famoso Christian Dior, lançada em 1947 e que ficou mais conhecida como New Look. O Bar Suit, o modelo icônico formado por saia longa e plissada de tafetá e blazer superajustado numa cintura extremamente fina marca uma nova silhueta que clama um novo conceito de feminilidade e sofisticação da mulher, após um período severo de restrições de moda e comportamento impostas pela guerra (vale a pena dizer que a Segunda Guerra acabou em 1945, mas a restrição de tecidos só em 1946 ou até 1947 em alguns lugares). 

O "Bar Suit", ícone mais conhecido do New Look de Dior e uma provável inspiração de Mme. Lallet
Em minha pesquisa, não consegui descobrir quando Mme. Lallet abriu e quando fechou seu ateliê. Mas ao menos consegui traçar algum traço da linha que ela seguia nos anos 1950, que era claramente a moda francesa. E claramente ela não era a única, ela representa um grupo. E quantas garotas e mulheres teriam comprado um chapéu como esse? E quanto a sociedade feminina do Rio de Janeiro se vestiu à moda de Dior?

E quem teria sido Madame Lallet? Uma francesa residente no Brasil? Uma brasileira que afrancesou o próprio nome para ser mais associada ao “chic de Paris”? E como teria sido seu ateliê, a sua vitrine e as chapeleiras que a ajudavam?  E porque há apenas uma menção dela nos jornais de época? Qual era o seu nome? Quem foi Madame Lallet na História? 

Tantas perguntas sobre uma mulher misteriosa! Mas quem diria que uma simples caixa já pudesse responder a algumas delas?

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4 comentários

  1. Que texto gostoso.
    A medida que lia, percorria a linha do tempo e imaginava como seria seu ateliê, sua figura e suas clientes.
    Obrigada por mais esse banho de história!

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  2. amei o texto....gratidão por compartilhar com a gente tanto conhecimento e inspiração

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    1. Glaucia, eu que agradeço por ter se dedicado à leitura! Muito obrigada!!!

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