1950santiquárioBrasilchapéuChristian Diorcoleçãohistória da modamicrohistóriamoda vintagemodista do passadonew lookrio de janeiro
O chapéu de Madame Lallet
No mês passado recebi de um antiquário uma caixa cheia de chapéus. Esta foi uma daquelas compras feitas "no escuro", sem nem perguntar direito o que iria receber 😅. Mas o conteúdo deu tão certo, que fiquei na dúvida do que gostava mais: do conteúdo em si ou da caixa. E resolvi descobrir sua história.
PARTE I - A caixa
Vamos começar pela caixa.
A caixa é de papel cartão reforçada com madeira, e a tampa é fechada com um cadarço azul-escuro. Dentro ainda há o papel vegetal original que embrulhava o chapéu. Nunca ouvi falar de Madame Lallet, mas ela tinha uma loja em Copacabana. Mais precisamente na Av. Copacabana n. 945, onde vendia “Chapeos, Modelos, Novidades”.
A probabilidade de um objeto desse resistir ao tempo é muito pequena.
Uma pausa: vamos imaginar a atendente da loja, ou a própria Madame Lallet arrumando o chapéu e fechando delicadamente dirigir caixa, enquanto a cliente observa. Ela chega em casa, entra em seu quarto, põe a caixa sobre a cama e a abre com carinho, feliz com a aquisição. Tira e põe na cabeça, se olha no espelho da penteadeira. Talvez tenha sido o seu único chapéu.
A probabilidade de um objeto desse resistir ao tempo é muito pequena.
![]() |
"Chapeos, modelos e novidades", o nome do ateliê e seu endereço: essas são as informações disponíveis na caixa. |
Hora de convocar o espírito do detetive Sherlock Holmes (!)
PARTE II - Os chapéus.
O mais engraçado é que nenhum deles é de Madame Lallet.
Porém, uma linha do tempo dos chapéus usados em meados do século XX está nesta caixa...alguns tem etiquetas que indicam os ateliers onde foram comprados, e outros não.
Dos anos 1940, dois chapéus que ainda preciso identificar o nome do modelo. Dos anos 1950, dois casquetes. Dos anos 1960, um pillbox. Dos anos 1970, um chapéu de feltro e outro de abas largas do tipo floppy. Todos em muito bom estado! Mas vou detalhar melhor cada um deles em um próximo post 😉
Parte III - A investigação
Então fui buscar saber mais sobre Mme. Lallet. Na Hemeroteca Digital Brasileira encontrei alguns anúncios sobre seu atelier, datando do ano de 1954, o que dá à caixa pelo menos uns 60 anos de existência. Porém nenhuma foto ou desenho dos chapéus e figurinos, apenas um pequeno classificado num jornal comum, que nem de moda era. Fora isso, nenhum registro dela, em nenhuma tese, revista, em lugar nenhum.
![]() |
Em 1954, Mme. Lallet fez anúncios no jornal Correio da Manhã. Hemeroteca Digital Brasileira. |
"Paris Chic": dá pra ver que quem ditava o tom da loja era a moda francesa. E não só na loja dela. Nesta época a avenida Nossa Senhora de Copacabana começou a receber várias boutiques de costureiras que começaram a vender, além de roupas sob medida, roupas prontas e abertamente inspiradas na moda francesa. Para saber mais, esta dissertação trata maravilhosamente sobre o assunto.
O ateliê ficava no Edifício Roxy, um prédio-galeria importante no Rio de Janeiro que abriga até hoje o tradicional Cine Roxy, o point dos moços e mocinhas da Copacabana nos anos 1940 e 1950.
Será que a vitrine da loja dava para a rua? Será que enquanto aguardavam na fila, as moças ficavam observando os chapéus?
![]() |
O Cine Roxy, vizinho de Madame Lallet, na década de 1950. Era por essa rua que ela andava todo dia. Sente a vibe! |
Mas como encontrar um chapéu que tenha sido feito, construído por ela? Que tenha registrado o seu trabalho para a posteridade?
Sorte (!). No local mais improvável, o Mercado Livre, há um vendedor que tem um chapéu feito no atelier dela. Que loteria!
A peça é um modelo de chapéu denominado mushroom hat que, por falta de tradução melhor, chamarei aqui de chapéu-cogumelo 😂😂. Estes acessórios se caracterizam pela forma arredondada e por ter as abas totalmente viradas para baixo, mas com uma figura achatada sobre a cabeça. Estes chapéus foram bem marcantes sobretudo com o lançamento da coleção New Look da Dior em 1947 e foram populares nas décadas de 1950 e 1960 também, com figuras como Audrey Hepburn entre suas adeptas..
Estes chapéus tinham um apelo mais formal. Porém no Rio de Janeiro dos anos 1950, é possível que tenham sido usados também em situações mais informais, visto que suas abas largas podem ter sido extremamente úteis para proteger a pele do sol.
O modelo de Madame Lallet é de palha, encimado por um alfinete para prender o chapéu nos cabelos. Este alfinete é bem grande, mas é harmônico, visto que o chapéu é largo (apesar de o vendedor do Mercado Livre não fornecer as medidas, dá para ter uma dimensão do tamanho). Na parte interna, ele é forrado com tecido preto e há também um elástico para segurá-lo à parte de trás do penteado. Há ainda uma etiqueta com as inscrições "Paris Chic" e "Rio" ao local do nome do ateliê. Essa informação diz muito: coloca o Rio como "o local da moda", o que era, de algum modo, verdade 😊
O modelo de Madame Lallet é de palha, encimado por um alfinete para prender o chapéu nos cabelos. Este alfinete é bem grande, mas é harmônico, visto que o chapéu é largo (apesar de o vendedor do Mercado Livre não fornecer as medidas, dá para ter uma dimensão do tamanho). Na parte interna, ele é forrado com tecido preto e há também um elástico para segurá-lo à parte de trás do penteado. Há ainda uma etiqueta com as inscrições "Paris Chic" e "Rio" ao local do nome do ateliê. Essa informação diz muito: coloca o Rio como "o local da moda", o que era, de algum modo, verdade 😊
![]() |
O chapéu de Mme. Lallet. |
![]() |
A assinatura: etiqueta sobre fita de gorgurão, destacando novamente a inscrição "Paris Chic". |
Se o chapéu ainda estiver à venda, você poderá ver mais imagens aqui (não sou eu quem está vendendo!)
Com este modelo, Madame Lallet tira partido da maior sensação da moda do pós-guerra: a coleção Corelle do famoso Christian Dior, lançada em 1947 e que ficou mais conhecida como New Look. O Bar Suit, o modelo icônico formado por saia longa e plissada de tafetá e blazer superajustado numa cintura extremamente fina marca uma nova silhueta que clama um novo conceito de feminilidade e sofisticação da mulher, após um período severo de restrições de moda e comportamento impostas pela guerra (vale a pena dizer que a Segunda Guerra acabou em 1945, mas a restrição de tecidos só em 1946 ou até 1947 em alguns lugares).
![]() |
O "Bar Suit", ícone mais conhecido do New Look de Dior e uma provável inspiração de Mme. Lallet |
Em minha pesquisa, não consegui descobrir quando Mme. Lallet abriu e quando fechou seu ateliê. Mas ao menos consegui traçar algum traço da linha que ela seguia nos anos 1950, que era claramente a moda francesa. E claramente ela não era a única, ela representa um grupo. E quantas garotas e mulheres teriam comprado um chapéu como esse? E quanto a sociedade feminina do Rio de Janeiro se vestiu à moda de Dior?
E quem teria sido Madame Lallet? Uma francesa residente no Brasil? Uma brasileira que afrancesou o próprio nome para ser mais associada ao “chic de Paris”? E como teria sido seu ateliê, a sua vitrine e as chapeleiras que a ajudavam? E porque há apenas uma menção dela nos jornais de época? Qual era o seu nome? Quem foi Madame Lallet na História?
Tantas perguntas sobre uma mulher misteriosa! Mas quem diria que uma simples caixa já pudesse responder a algumas delas?
4 comentários
Que texto gostoso.
ResponderExcluirA medida que lia, percorria a linha do tempo e imaginava como seria seu ateliê, sua figura e suas clientes.
Obrigada por mais esse banho de história!
Eu que agradeço pela leitura, Cilene!
Excluiramei o texto....gratidão por compartilhar com a gente tanto conhecimento e inspiração
ResponderExcluirGlaucia, eu que agradeço por ter se dedicado à leitura! Muito obrigada!!!
Excluir